* Colaborou Leandro Paulo Bernardo
Em alguns dias do ano, todos os caminhos no Nordeste levam a Juazeiro do Norte, no Ceará, para as famosas romarias ao Padre Cícero. Uma das maiores ocorre em 20 de julho, o dia da morte daquele que para muitos nordestinos é um santo.
Padim Ciço exerceu uma forte influência religiosa na região, foi um político muito atuante (primeiro prefeito da cidade e vice-governador do Ceará) e também colaborou para a introdução do futebol na cidade de Juazeiro do Norte.
De acordo com o político e escritor Senhorzinho Ribeiro, o primeiro time de futebol na cidade foi o Joaseiro Futebol Clube, criado no dia 15 de janeiro de 1927. O time usava camisas com listras verticais verdes e brancas e todo o material foi adquirido através de cotas entre os diretores. O problema era a falta de local para treinos e jogos.
Alguns membros da diretoria resolveram pedir uma ajuda ao Padre Cícero, que um ano antes havia sido expulso definitivamente da Igreja Católica. Generosamente, o Padim agraciou o clube com a doação de um terreno na rua do seminário para construção do estádio.
Padre Cícero com 82 anos
Um mês após a doação, o Joaseiro marcou um amistoso contra o Crato Atlético. A única coisa que separava os jogadores da torcida eram cordas. O time do Crato venceu por 2 a 0 e o primeiro alvi-verde do Cariri jogou com Mamede, Fauser Jereissati, Lauro Pereira, Ti Jorge, Honorato, os filhos de Possidônio de Almeida, Didi Melo, Chita-Fina e Hercílio. Posteriormente, chegaram os primeiros contratados: Sibito e Papa-Vento, ambos oriundos de Garanhuns.
Logo depois surgiu o segundo time, o Palestra, fundado pelo desportista João Araújo, que jogava no antigo campo, na atual praça Leandro Bezerra.
Palestra 1940 com Mascote no meio da segunda fila. Foto arquivo Raimundo Araújo
Padre Cicero morreu em 1934 com 90 anos. O campo foi adquirido pela Usina Zé Bezerra de Menezes. Os jogos passaram a acontecer no Estádio dos Bandeirantes, no bairro São Miguel, e a primeira rivalidade foi entre Treze e América – comandados respectivamente pelos amigos Mascote e Antônio Patu.
Tonico, Doca e Dorim. Foto arquivo Wilton Bezerra
Criado em 1937, o Galo de Mascote – apelido do Treze – era convidado para amistosos em outros estados, aniversários de municípios ou festas religiosas na região, sempre com a alcunha “o time da terra do Padre Cícero”. Um dos destaques era o atacante Beato.
Treze campeão da Cidade em 1953 Em pé: George, Viúvo, Doca, Edmilson, Tonico e Dorim. Agachados: Iram, Beato, Wilson, Rodrigues (artilheiro) e Machado.
Com o fim do América, em 1958, o novo rival do Treze passaria a ser o Guarani Esporte Clube, fundado em 10 de abril 1941 por comerciantes do mercado central e com a simpatia dos torcedores do extinto América.
Após uma grande polêmica no Campeonato Municipal de 1962, que teria favorecido o Guarani, Mascote decidiu acabar com o Treze.
Este episódio coincidiu com a fundação de outro time, já no ano seguinte, que passaria a ser o novo rival do Guarani: o Icasa Esporte Clube, oriundo da Indústria e Comércio de Algodão de Sociedade Anônima (ICASA). Atrás da fábrica, os funcionários fizeram um campo de futebol onde, antes ou depois do expediente, realizavam os treinos.
O Icasa atraiu jogadores da região com bons salários e uma estrutura excelente para o treinador do Volante Atlético Clube, Praxedes Ferreira, montar um esquadrão a partir de 1965. O alvi-verde foi campeão municipal oito vezes seguidas. A torcida do Treze adotou o Icasa como novo time.
Com a inauguração do Estádio Mauro Sampaio, o popular Romeirão, em 1970, o futebol de Juazeiro do Norte se profissionalizou. Anos depois, seus dois maiores times passaram a filiados da Federação Cearense de Futebol e, em 1973, passaram a jogar o campeonato estadual.
Primeiro Guarani em estadual
Primeiro Icasa em estadual
Por campeonatos nacionais, o verdão do Cariri jogou a terceira divisão em 1981 e a segunda divisão em 1984. O Romeirão passaria a receber grandes craques ao longo dos anos.
Em 1972, Garrincha jogou no Romeirão, tendo atuado um tempo pelo Olaria e outro pelo Guarani.
Mané Garrincha com a camisa do Guarani, o segundo agachado
Pelé jogou um amistoso pelo Santos contra o Guarani em 1974, o Fluminense enfrentou um combinado Guarani/Icasa em 1977 no recorde de público do estádio, 24 mil pagantes. Mas nenhuma partida foi tão marcante quando a última de Sócrates pelo Corinthians no Brasil.
Em 1984, Sócrates era indiscutivelmente o melhor jogador em atividade no país. Contudo, já havia acertado um contrato com a Fiorentina (ITA). Antes de Sócrates assinar com a equipe italiana, o advogado e promotor de eventos José Afonso de Oliveira, em abril daquele ano, conseguiu marcar um amistoso entre Corinthians e Vasco da Gama em Juazeiro do Norte.
Oliveira era paraibano, mas havia morado 25 anos em Juazeiro do Norte, trabalhou em eventos esportivos e naquela época era assessor de César Cals, cearense e ministro de Minas e Energia. A ideia original seria marcar um amistoso beneficente para ajudar associações e moradores carentes da cidade. Com o fim do Campeonato Brasileiro e a negociação do Doutor já concretizada, era preciso convencê-lo a ir jogar no estado natal do seu Pai.
Oliveira era amigo do jornalista baiano Rui Pimentel, que também era companheiro de Sócrates e do cantor Fágner em serestas e noites de boêmia. Coube a Rui ser o elo para convencer Sócrates a participar do jogo.
Por outro lado, havia um problema de logística. Padre Cicero havia doado o terreno para construção do aeroporto, só que esse não havia sido finalizado. O deputado federal cearense e ex prefeito de Juazeiro, Mauro Sampaio (construiu o estádio que levava seu nome e a Estátua de Padre Cícero, na Colina do Horto, com 27 metros de altura) conseguiu que o Departamento de Aviação Civil liberasse a pista para o pouso do Boeing fretado por 32 milhões de cruzeiros.
Com a expectativa de um grande jogo, faltava convencer patrocinadores e rádios da região. A solução foi divulgar o jogo como parte das homenagens ao Padre Cícero pelos 50 anos da sua morte. Assim, 20 rádios da região confirmaram a transmissão daquele amistoso.
Ao meio dia do sábado (2), o Boeing chegou em Juazeiro. Duas mil pessoas aguardavam na pista, Sócrates desceu do avião junto com Rui Pimentel. Enquanto o Vasco treinava no Romeirão, a delegação do Corinthians se “concentrava” no restaurante de Praxedes Ferreira (antigo treinador do Icasa).
Sócrates e Casagrande na sacada do Hotel Panorama em Juazeiro do Norte. Foto da Revista Placar
Oliveira ainda acertaria a presença de Roberto Dinamite, que estava concentrado com a seleção brasileira, só para entrar em campo e saudar o público. O atacante tomou um avião no Rio de Janeiro na tarde do sábado, chegou à noite em Fortaleza, embarcou num ônibus para Juazeiro, a 580 km de distância, e chegou na manhã do domingo.
No domingo, com a presença de quase 20 mil pessoas, o Corinthians venceu o Vasco por três a zero e a última camisa de Sócrates jogando pelo Corinthians no Brasil foi “doada” por Casagrande para uma fã, talvez não sabendo que a camisa da despedida era pretendida pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Juazeiro do Norte, a fim de leiloá-la para arrecadar fundos de acordo com a reportagem de Luiz Ricardo Leitão publicada na Folha de S. Paulo no dia 4 de junho de 1984.
O programa Globo Esporte deu destaque a essa partida, por coincidência numa matéria do paulista Luis Ceará.
No decorrer dos anos, Guarani e Icasa seguiram como coadjuvantes no campeonato estadual. O alvi-verde seria um dos quatros times declarados campeão estadual em 1992, até ser extinto em 1998 por dívidas trabalhistas.
Durante essa entressafra, surgiu o Juazeiro Empreendimentos Esportivos, que foi vice campeão estadual em 1999. Em 2002, surgiu a Associação Desportiva Recreativa Cultural Icasa, todavia a Federação Cearense de Futebol não a reconhece como sucessora do Icasa Esporte Clube ou do Juazeiro Empreendimentos.
Só que esse Icasa veio muito mais forte e sem esquecer do Padim Ciço. O técnico em radiologia João Gomes, fanático pelo Icasa, estava presente em todos os jogos no Romeirão e em finais vestido de Padre Cícero.
O Verdão do Cariri foi vice-campeão estadual em 2008 e assegurou uma vaga na Série C de 2009. Naquele ano foi rebaixado no Cearense, porém, conseguiu o acesso para a Série B após uma goleada por 6 a 2 no Romeirão em cima do Paysandu. Passou duas temporadas na Série B até ser rebaixado em 2011.
Sua passagem pela terceira divisão seria rápida. Em 2012, conseguiu um novo acesso e por pouco não foi campeão ao perder a decisão para o Oeste.
Em 2013, não obteve o milagre de chegar à primeira divisão, ainda conquistou a 5ª colocação, ficando a um ponto do acesso. Na derrota por 2 a 1 para a Chapecoense, no Romeiro, pela 37ª rodada (naquele que poderia ter sido o jogo do acesso) a torcida icasiana foi à partida usando chapéus de palha, como forma de homenagem aos milhões de romeiros que anualmente visitam Juazeiro do Norte. A partida ficou conhecida como jogo do Chapéu.
Infelizmente, o Icasa foi caindo ao logo dos anos e atualmente está na segunda divisão estadual e perdeu o acesso nas semifinais de 2018 para o Barbalha. A equipe tem uma boa categoria de base que treina no CT Praxedão.
O máximo que o Guarani alcançou foi a terceira colocação no estadual de 2016. Esteve presente nas últimas quatro edições da Série D. Em 2018, foi lanterna num grupo que tinha Imperatriz, América de Natal e Belo Jardim. Na quinta rodada, apenas 29 pessoas foram ao Romeirão para assistir o confronto contra o América. Na última rodada, apenas três pessoas pagaram para ver o confronto do Leão do Mercado contra o Calango em Belo Jardim.
Em 2010, a Federação Cearense de Futebol Padre Cícero resolveu batizar a final do interior de Taça Padre Cícero. As duas equipes do interior do estado de melhor campanha em todo o campeonato cearense e que não tenham vencido nenhum turno, decidirão o título de Campeão de Futebol do Interior do estado que é realizado em duas partidas, em ida e volta. O Guarani possui três, Horizonte e Icasa duas, Guarany de Sobral e o Iguatu (agora em 2018) uma.
Taça Padre Cícero
Padre Cícero Romão Batista foi perdoado pela Igreja Católica em dezembro de 2015 por decisão do Papa Francisco após mais de um século de punição, no episódio em 1889 que ficou conhecido como “milagre da hóstia”, no qual uma hóstia dada pelo padre a uma beata teria se transformado em sangue.
As romarias atraem mais de dois milhões de pessoas por ano. Juazeiro do Norte é uma das melhores cidades em qualidade de vida do Nordeste e a influência cultural e religiosa do Padim Ciço é algo imensurável para o povo brasileiro.
* Leandro Paulo Bernardo – Cirurgião-Dentista, apaixonado por futebol, literatura e música desde os quatro anos, e com o coração dividido entre o Santa Cruz e a Portuguesa